Apesar de já estagiar num 'lugar sério de reportagem' há quatro meses, só hoje fui batizada. Para quem não é familiarizado com o jargão - aliás, uma das coisas que mais gosto no jornalismo são os jargões -, o batismo de um foca - olha aí outro jargão -, de um iniciante na dura vida de repórter, é quando ele encara uma pauta - precisa explicar o que é pauta? -, uma matéria bem sinistra. Seja pelo conteúdo, pela dificuldade de conseguir uma fonte, ou quando ele precisa se esforçar fisicamente para ir atrás da notícia. Meu caso tem mais a ver com a terceira opção, embora o conteúdo tenha sido bem pesadinho também. Mais deixa eu contar...
Chego na redação às 7h e pouquinho e o chefe diz que vou acompanhar uma repórter na rua. Ainda não sabe qual e diz que a pauta - olha aí o bendito jargão de novo - do dia está fraquíssima, e isto é ruim, porque é geralmente nos dias de pauta fraca que acontecem as maiores tragédias para a humanidade e, consequentemente, para os repórteres que vão cobrí-las. Como é véspera das minhas férias, o chefe resolve me mandar para a pauta de polícia, e diz que vai ser divertido. Gravador na mão, sigo com a repórter especialista em "mundo cão" e o motorista, seu fiel escudeiro pelas favelas do Rio e Grande Rio, para Belford Roxo, onde tinham encontrado um corpo de uma criança que poderia ser de um menino que desapareceu em um tiroteio dez dias atrás. A ida foi tranquila, a foca só ouvindo as histórias bizarras pelas quais a repórter, o motorista e eventuais estagiários já passaram.
Quanto mais chegávamos perto do tal lugar em que o tal corpo tinha sido encontrado - a beira de um rio, por sinal, mais eu estranhava. Parecia que entrava num caminho para um lugar bucólico e interiorano. Só avistávamos cavalos e chacoalhávamos por conta dos enormes buracos na estrada de terra. Que impressão errada. O lugar é, definitivamente, um dos piores em que já estive. Não chega a ser feio, mas a aura de 'local de desova' e o cheiro acre de esgoto misturado a decomposição me dá náuseas até agora. Para encontrar os outros jornalistas, ao mesmo tempo concorrentes e coleguinhas, tivemos que pular uma vala. Consegui atravessar intacta, mas uma repórter de uma outra rádio, que passou segundos depois de mim, não teve a mesma sorte. Desequilibrou-se e enfiou uma perna no esgoto até o joelho, enquanto o joelho da outra perna bateu com tudo na grama nojenta. Coitada... precisou sair às pressas para comprar uma calça e sapatos novos. Alguns passos à frente, deparei-me com outro obstáculo. E desta vez teria que me equilibrar em uma tora de madeira para atravessar a vala. Não pensei muito, e quando vi, tinha conseguido chegar ao outro lado. Não sem sujar a sapatilha e a calça. Desejava muito ter ido de tênis, mas agradecia por não estar de sandalinha. Era impossível não ver o corpo que a polícia tinha encontrado. Afinal de contas, era por causa dele que eu estava ali. Encarei-o e não senti nada. Um nada que não dá para explicar, acho que o dever do ofício nos impede de refletir sobre uma coisa tão simples. Aquilo, que estava sendo montado tal qual um quebra-cabeças na nossa frente, tinha tido uma vida, e com certeza não tinha merecido morrer e ser escondida daquela forma. Fosse quem fosse. Mas só fui pensar nisso bem depois. Precisava tentar anotar o que via, tentar ignorar o cheiro, tentar espantar os mosquitos que zuniam no ouvido - e os que pousavam displicentemente pelos braços -, tentar não olhar para as centenas de urubus que sobrevoavam a área e tentar não imaginar que um daqueles policiais com uma metralhadora enorme na mão podia enloquecer e sair metendo bala nos pobres jornalistas. Pode ter sido um batismo bem sinistro, mas eu não pude deixar de perceber uma coisa que, até então, tinha medo. Os coleguinhas realmente se ajudam. Pelo menos ali, não existia concorrência, todos sofriam, apuravam e compartilhavam. No fim de tudo, a resposta que já esperávamos: ainda não tinham como saber se o tal corpo era o do menino desaparecido. De volta ao carro, à estrada chacoalhante, sabíamos que ainda teríamos muita coisa pela frente... incluindo matar a fome com amendoim, fazer xixi num banheiro microscópico e sem luz, levar fora de delegado, ser expulsa da sala do delegado por uma repórter nem tão concorrente assim - iihh, cadê o coleguismo dos coleguinhas? Foi só elogiar... De volta à redação, lá para às 15h30, eu e a repórter - minha, digamos, madrinha de batismo - até nos orgulhamos de contar a aventura pela qual passamos. E eu percebi que, apesar de toda a dificuldade, simplesmente me amarrei. E faria tudo de novo. E farei.
Chego na redação às 7h e pouquinho e o chefe diz que vou acompanhar uma repórter na rua. Ainda não sabe qual e diz que a pauta - olha aí o bendito jargão de novo - do dia está fraquíssima, e isto é ruim, porque é geralmente nos dias de pauta fraca que acontecem as maiores tragédias para a humanidade e, consequentemente, para os repórteres que vão cobrí-las. Como é véspera das minhas férias, o chefe resolve me mandar para a pauta de polícia, e diz que vai ser divertido. Gravador na mão, sigo com a repórter especialista em "mundo cão" e o motorista, seu fiel escudeiro pelas favelas do Rio e Grande Rio, para Belford Roxo, onde tinham encontrado um corpo de uma criança que poderia ser de um menino que desapareceu em um tiroteio dez dias atrás. A ida foi tranquila, a foca só ouvindo as histórias bizarras pelas quais a repórter, o motorista e eventuais estagiários já passaram.
Quanto mais chegávamos perto do tal lugar em que o tal corpo tinha sido encontrado - a beira de um rio, por sinal, mais eu estranhava. Parecia que entrava num caminho para um lugar bucólico e interiorano. Só avistávamos cavalos e chacoalhávamos por conta dos enormes buracos na estrada de terra. Que impressão errada. O lugar é, definitivamente, um dos piores em que já estive. Não chega a ser feio, mas a aura de 'local de desova' e o cheiro acre de esgoto misturado a decomposição me dá náuseas até agora. Para encontrar os outros jornalistas, ao mesmo tempo concorrentes e coleguinhas, tivemos que pular uma vala. Consegui atravessar intacta, mas uma repórter de uma outra rádio, que passou segundos depois de mim, não teve a mesma sorte. Desequilibrou-se e enfiou uma perna no esgoto até o joelho, enquanto o joelho da outra perna bateu com tudo na grama nojenta. Coitada... precisou sair às pressas para comprar uma calça e sapatos novos. Alguns passos à frente, deparei-me com outro obstáculo. E desta vez teria que me equilibrar em uma tora de madeira para atravessar a vala. Não pensei muito, e quando vi, tinha conseguido chegar ao outro lado. Não sem sujar a sapatilha e a calça. Desejava muito ter ido de tênis, mas agradecia por não estar de sandalinha. Era impossível não ver o corpo que a polícia tinha encontrado. Afinal de contas, era por causa dele que eu estava ali. Encarei-o e não senti nada. Um nada que não dá para explicar, acho que o dever do ofício nos impede de refletir sobre uma coisa tão simples. Aquilo, que estava sendo montado tal qual um quebra-cabeças na nossa frente, tinha tido uma vida, e com certeza não tinha merecido morrer e ser escondida daquela forma. Fosse quem fosse. Mas só fui pensar nisso bem depois. Precisava tentar anotar o que via, tentar ignorar o cheiro, tentar espantar os mosquitos que zuniam no ouvido - e os que pousavam displicentemente pelos braços -, tentar não olhar para as centenas de urubus que sobrevoavam a área e tentar não imaginar que um daqueles policiais com uma metralhadora enorme na mão podia enloquecer e sair metendo bala nos pobres jornalistas. Pode ter sido um batismo bem sinistro, mas eu não pude deixar de perceber uma coisa que, até então, tinha medo. Os coleguinhas realmente se ajudam. Pelo menos ali, não existia concorrência, todos sofriam, apuravam e compartilhavam. No fim de tudo, a resposta que já esperávamos: ainda não tinham como saber se o tal corpo era o do menino desaparecido. De volta ao carro, à estrada chacoalhante, sabíamos que ainda teríamos muita coisa pela frente... incluindo matar a fome com amendoim, fazer xixi num banheiro microscópico e sem luz, levar fora de delegado, ser expulsa da sala do delegado por uma repórter nem tão concorrente assim - iihh, cadê o coleguismo dos coleguinhas? Foi só elogiar... De volta à redação, lá para às 15h30, eu e a repórter - minha, digamos, madrinha de batismo - até nos orgulhamos de contar a aventura pela qual passamos. E eu percebi que, apesar de toda a dificuldade, simplesmente me amarrei. E faria tudo de novo. E farei.
foto: Agência O Globo
(O plug in "curtir" está com defeito. Se realmente curtiu o texto, porque não comentar "Curti" por enquanto? Viva a organicidade.)
4 comentários:
admiro esse tipo de garra pela profissão. admiro mais ainda jornalistas assim, como você, que vão criando um leque enorme de histórias pra contar, baseadas somente em realide.
parabéns march, continue com esse empenho e sede de apuração.
Fico feliz por vc. Porque como é prazeroso e gratificante trabalhar naquilo que se gosta. Parabéns e sucesso sempre. Carlos Pinto
Má,
Me orgulho por ter uma filha como você! Sabe que fiquei surpreendida com sua coragem. Eu jamais teria chegado perto deste lugar, não consigo encarrar essas cenas.
Bjs
Eu tinha feito um supercomentário, parecia mais um texto, mas o blogspot fez o favor de dar pau e não publicá-lo, então, vou me limitar a dizer: concordo em gênero, número e grau, Marcelitcha! Tenho as mesmas impressões que você. E, a cada dia, percebo o quanto somos estranhos por gostarmos destas coisas (não que a gente goste de ver o sofrimento alheio, que sejamos tão ruins assim, mas já que existe, somos apaixonados por relatar, apurar), por sentirmos vontade de ir atrás, de sofrer, de buscar a notícia. Sim, porque somos loucos e preferimos as que dão mais trabalho, obviamente... as pautas fáceis e tranquilas parecem não ter o mesmo valor, como tudo na vida...
Mais uma vez (e não é mentira!), chorei com um post seu... que você continue assim: com texto maravilhoso e ótimas histórias pra contar, porque é isto que vale a pena na nossa profissão, né, já que os "contras" são muitos (e nem precisamos estar formadas para saber que os salários não são lá grandes coisas e a carga horária é intensa...).
Sem qualquer puxa-saquismo e com toda a isenção (se isto for possível), tenho certeza que você será uma das mais competentes profissionais do jornalismo! ;)
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