sábado, 6 de setembro de 2014

Eu, Geni, a escada e o zepelim

Eu moro no mesmo prédio há vinte e dois anos. Em pouco mais de duas décadas, já vi muita coisa acontecer nesses oito andares do comecinho da General Glicério. Mudanças, nascimentos, casamentos, mortes... Já vi até um gato despencar do sétimo andar e continuar vivo, mesmo que por alguns minutos. É, ele já tinha gasto as outras seis vidas dele. Quando vim morar aqui, era um pingo de gente aprendendo a falar. Fui crescendo - para cima e para os lados - e vira e mexe um vizinho mais antigo me pergunta, no elevador, se eu não vou parar de crescer. A resposta depende do meu humor. Em dias de TPM braba já devo ter respondido que parei de crescer para cima há muito tempo, mas que não consigo parar de crescer para os lados. É a deixa para que o resto da viagem seja quieta até o quinto andar. Dia desses eu estava pensando comigo mesma se consigo saber quem são os moradores dos outros trinta e três apartamentos do meu prédio. Cansei da lista quando ela não tinha chegado nem a dez. Acho que é porque ando passando os segundos intermináveis do elevador olhando fixamente para a tela do celular. Houve um tempo em que não era assim. Eu ficava para cima e para baixo com a Ragenda, minha secretária do lar - que, aliás, merece um texto só para ela aqui no blog - subindo e descendo as escadas do prédio. A Ragi nunca foi muito fã de elevador, e diz que é bom subir escada para fazer exercício. Falante, ela chegava a passar horas equilibrando os pezinhos nos degraus batendo papo furado com um porteiro ou um vizinho. E eu lá, do lado dela, esperando a conversa acabar. Nessas idas e vindas na escada, várias vezes topávamos com a dona Geni, uma velhinha daquelas bem típicas, que morava no segundo ou terceiro andar. Eu, que sempre fui um pouco carente do modelo dona Benta de avó, nutria uma simpatia espontânea pela dona Geni. Ela era uma graça. Eu só não conseguia entender porque a Ragenda, toda vez que topava com a pobre velhinha, começava a cantar "joga pedra na Geni, joga bosta na Geni... Ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir... Ela dá para qualquer um... Maldita Geni!". E toda vez eu entrava numa paranoia braba tentando imaginar porque aquela senhorinha fofa era tão terrível a ponto de ser boa para apanhar!! Alguém já tinha jogado bosta na Geni? Coitada! Quanto tempo ela ficou fedendo? E ela dá o que para qualquer um? Eu tinha uns seis, sete anos, não conseguia encontrar as respostas para as minha dúvidas e não tinha nem coragem de perguntar para a Ragenda o porquê daquilo tudo. O engraçado é que a dona Geni não ficava chateada com a música. Pelo contrário, ela até ria. Vai ver era malvada mesmo... O tempo passou, eu comecei a andar de elevador por conta própria, os encontros com a dona Geni foram ficando escassos e ela já não mora aqui no prédio há muito tempo.  Quando enfim descobri que "joga pedra na Geni" era um verso de uma música do Chico Buarque, tudo ficou claro. E eu fiquei chocada porque a Ragenda comparava a nossa fofa dona Geni com o travesti da "Ópera do malandro". Hoje, "Geni e o zepelim" é uma das minhas músicas preferidas. É forte, tensa, teatral... Mas, sempre que escuto, lembro da história aqui do prédio e rio sozinha. Algum zepelim gigante já deve ter se encarregado de levar a dona Geni para o céu... E algo me diz que ela também sorri a bordo do dirigível.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Mitos de ponte aérea


Paulista dá só um beijinho no rosto quando vai cumprimentar alguém. Carioca dá dois. Vira e mexe, quando um paulista e um carioca se cumprimentam, o carioca morre de vergonha porque acaba beijando o nada ou então, na pior das hipóteses, quase tasca um selinho no paulista que, depois de ter mandado o primeiro beijinho, fica imóvel. Daí você pode concluir que cariocas são efusivos, calorosos, festeiros, dados... E que paulistas são secos, práticos e até antipáticos. Mas você conclui errado. Ou de forma precipitada. Eu sou uma carioca convicta - apesar da minha carteira de identidade não mostrar isso - e, na semana passada, fiquei em São Paulo trabalhando e estudando. Lá pelo quarto dia já cumprimentava as pessoas com um beijinho só, tipo uma paulistana nata. Mas acho que isso aconteceu porque todo santo dia, quando eu chegava no trabalho, era cumprimentada efusivamente pelos paulistas com o tal do beijinho. Achei isso muito estranho, porque eu mal beijo e abraço o pessoal lá de casa... Quanto mais os colegas de trabalho, que vejo todos os dias, no mesmo horário, sentados nas mesmas baias, quase sempre com os mesmos sorrisos carimbados nos rostos. E aí os secos são os paulistas? É isso mesmo?  Esse tempinho que eu passei em São Paulo serviu para derrubar alguns, digamos, mitos da ponte aérea. De manhã, eu pegava um ônibus quase vazio e, em menos de 15 minutos, estava na porta do trabalho. Nada de trânsito, nada de transporte lotado. É claro... Fiquei hospedada mais ou menos perto de onde trabalhava, e só entrava no ônibus depois das 9h, quando o rush matutino perde a força. Aqui no Rio eu também moro mais ou menos perto do trabalho mas, mesmo fora do horário convencional de rush, de vez em quando pego um trânsito louco, daqueles de cidade-sede de olimpíada, sabe? Dizem que o paulistano é estressado, vive correndo e só pensa em dinheiro. Mas eu enfrentei uma fila um pouco demorada na Starbucks porque a moça do caixa ficava decorando as letrinhas dos nomes escritos nos copos. E ninguém reclamou. Muito pelo contrário... Engravatados abriam sorrisos quando eram chamados ao balcão para buscar as bebidas. Como não ter fé na vida ao se deparar com uma livraria gigante, tão gigante que uma réplica de esqueleto de dinossauro em tamanho real parece pequena dentro dela, lotada, cheia de gente sentada no chão agarrada a um livro? As noites na Avenida Paulista eram tão animadas, coloridas e cheias de gente na calçada que eu só conseguia pensar na Times Square, em Nova York. De um lado, um trio de velhinhos tocava algo que lembrava uma charanga antiga. Do outro, um negão entoava um Djavan. Mais à frente, um cabeludo solava na guitarra... E as pessoas paravam para ver, ouvir, cantar e pingar moedinhas em chapéus tímidos. Tudo isso numa quarta-feira gelada do mês de julho. Aí você pode pensar "ah, mas era época de férias... Fica tudo muito mais tranquilo". É, pode ser, e eu não tenho mesmo como comprovar. Mas sei que uma semaninha em São Paulo me fez respirar fundo o ar poluído - nem tão diferente do balneário em que moro - e, meio sem querer, me fez sentir a vida. Na correria, a gente acaba se esquecendo... E é muito bom se reencontrar com a gente mesmo, seja numa ladeira íngreme ou numa esquina de Ipiranga com São João. 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Elevador

Foi um dia comum, daqueles que você nem lembra o que almoçou. Pendurei os fones de ouvido no pescoço, acabou a bateria do celular. Voltando para casa entrei no elevador do meu prédio. Dei de cara com uma mulher por volta dos seus 40, um homem já mais velho e cansado com vontade de querer tirar o terno ali mesmo e um "boa noite" vindo dos dois. Respondi "boa noite" também. Nem que a noite estivesse tão boa, nada melhora o silêncio que vem depois.
Como era de se esperar, esses dois vão sair do elevador depois de mim. Eles apertaram o 7 e o 9, o que me dá a função de ter que me despedir na hora de sair. Quem sai no segundo andar, como eu, tem sempre que fazer as honras, quebrar o gelo. A subida até lá, contando com andares como garagens e o playground, não parece longa o suficiente para pensar em outro cumprimento para a despedida. Seria estranho dar "boa noite" mais uma vez. É como insistir em querer que a pessoa esteja bem, ela pode achar que não parece estar. Tchau, fique bem. A convenção duvidosa de que a noite tem sempre que ser boa nem conseguiu percorrer direito minhas ideias. Fiquei encafifado, um certo incomodozinho tirando a dor de cabeça. Já me enturmei com a ideia de um "até logo", talvez um "até amanhã" daqueles que mal saem da boca direito. Só "tchau" seria pouco, prevê uma mínima intimidade ou certa falta de respeito. A vantagem de um "até logo" é que sempre convém. Mas não consigo me imaginar falando. Meu pai dá "até logos" como ninguém, mas ele já é pai. Um "até amanhã", quem sabe. Mas amanhã talvez eu chegue tarde, seria mentira. Pode ser que de manhã eu os pegue descendo, o elevador tá sempre no 7 quando eu estou indo trabalhar. Já sei, vou levantar só a sobrancelha e abrir a porta - agora o elevador já passava das garagens. Lembrei que a gente nem se olha no olho, só se olha o chão.
Ela estava de salto alto, ele com uma daquelas pastas de couro típicas, com senha e tudo. Diria que ela não tem filhos porque tem tempo de pintar a unha do pé. Ele trabalha no Centro com certeza, há uma certa reluzência no seu sapato recém engraxado que só engraxates de rua alcançam. Eu enlouqueci. Em menos de um minuto já pensei em tudo mas não sei como ir embora sem parecer indecoroso. Até. Fica com Deus. Bença. Tchau, tchau. Tchauzinho. Comecei a cogitar o absurdo. Eles nem me conhecem, acho que vou sair sem dizer nada. É isso. Tá chegando. Vai o que vier, tô com a mão na porta.
- Ei, rapaz. Seu fone caiu.
- Puxa, obrigado!
- Boa noite.
- Boa noite.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Uma Copa no quintal de casa

Foi tudo muito rápido. Tão rápido que eu mal pude acompanhar os fatos. E isso para uma jornalista é um quase um xingamento. Mas é a verdade... Só hoje parei e lembrei que precisava completar minha tabela da Copa do Mundo. Tinha parado lá nas quartas de final e, claro, recorri ao Google para relembrar os resultados dos jogos, que já tinham virado poeira na minha cabeça. Confesso que não precisei olhar na internet o resultado do jogo do Brasil com a Alemanha, na semifinal. Esse vai ficar por muito tempo na memória. E, olha, foi meio estranho escrever 1 do lado do Brasil e 7 do lado da Alemanha. O traço é quase o mesmo, mas a curva para esquerda do 7 significa uma Copa perdida. Bem perdida. Com requintes de crueldade. Micaço. Mas só no campo, né? No último texto que escrevi aqui, eu tinha consciência de que o país pagaria micos durante o mês da Copa, mas nem no pior pesadelo imaginava um desastre como o que aconteceu na semifinal. Pelo menos, minhas previsões pessimistas não se confirmaram. O Brasil todo virou uma festa. Nós, os donos da casa, nos esforçamos para agradar os visitantes. Eu nunca tinha ouvido tanto portunhol. Ainda na primeira fase da Copa, ouvi, no ônibus, o trocador ajudar uns chilenos: "tem que complar o inglesso na flente de la igleja". Ao ver a cara de desespero dos turistas, me levantei e fui ajudá-los. Em inglês foi mais fácil, e eles conseguiram descer no ponto certo para embarcar na van que leva para o Corcovado. E essa não foi a única vez... A Copa foi um turbilhão de emoções - como esquecer aquele jogo bizarro contra o Chile? Quantas histórias curiosas... A família dos seis dedos, uma mordida, uma joelhada, mil teorias da conspiração,
o inglês bêbado há dias com a mesma fantasia, as comitivas de argentinos que vieram de carro, não tinham onde dormir e tampouco compraram ingressos para as partidas. Mas o que valia era estar aqui, no centro do mundo. E a megaquadrilha internacional de cambistas desbaratada pela nossa Polícia Federal? Logo no Brasil! Quanta ironia... Agora só restam as lembranças do que a Copa foi e do que poderia ter sido. Na próxima vez que acontecer aqui, a gente nem sabe se vai estar vivo para contar a história. Essa semana, meio de ressaca, a gente foi voltando para a realidade, meio que se reacostumando à rotina. E ela não falha: só hoje, um avião com 295 passageiros foi derrubado por um míssil, a guerra entre Israel e Palestina parece ter entrado numa das piores fases e aqui no Rio uma mulher morreu ao levar um tiro na cabeça em plena luz do dia, num dos endereços mais cheios de pompa da cidade. E vamos à luta, driblando o caos, aplaudindo o pôr do sol... Esse ano ainda tem eleição. Eita, 2014! Deixa a gente respirar. Copa, saudades!

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Artilheirinho

Dois de um lado, dois de outro. A quadra é estreita, é improvisada, mal dá para bater escanteio. Assim mesmo o jogo acontece. Quando não acontece dá-se um jeito. Monta-se duas duplas, uma contra a outra. Artilheirinho é assim: o jogador que está na área tem que marcar para trocar com o que está no gol e assim por diante até completarem uns 6 ou 8 gols. O goleiro não pode jogar com a mão e nem o atacante pegar a bola fora ou ultrapassar o campo adversário. Não tem muito conflito nem jogo de corpo. Mas se a bola não chegou até o seu campo, azar o seu. O jogo já é fácil.
Alguns sabem da verdade. Artilheirinho não tem muito desafio. Foi feito para o pereba sentir que joga bem futebol. Aquele cara que chuta de bico, leva bolada na cara, tropeça driblando e só chuta na trave. Muitas vezes acima do peso, com a chuteira tinindo de nova e que as vezes desiste e pede para ficar no gol. Mas perde, espalma e faz escanteio, leva ovinho, dá passe errado. Quem gosta de artilheirinho pede a bola e não recebe, e quando recebe chuta para fora ou acaba pisando no pé de quem está marcando. Nunca dá briga, quem gosta de artilheirinho é incapaz de matar uma muriçoca. Os outros sabem disso. A porrada estanca quando dois craques se desentendem. Aí sim sai sangue, vem o pai para separar, o jogo para, xingamento para todo o lado. O outro pensa "Se a gente tivesse jogando artilheirinho..." Mas ele nunca é ouvido em campo. Quando já dá a hora do silêncio no prédio, quando os vizinhos começam a reclamar, ele tenta parar a bola. Geralmente é quando vira porradobol. Quem gosta de artilheirinho é ruim até no porradobol. Não acerta ninguém, mas leva bolada nas partes.
No outro dia ele acha que está melhor. Ontem era fase. Chega na quadra quando estão montando o time. Mas quem gosta de artilheirinho é sempre o último a ser escolhido e fica na "de fora". Quando o jogo acaba quem não gritar "dentro ou fora" é porque papou mosca, perdeu a vez. A regra é clara. Quem gosta de artilheirinho sempre papa mosca e fica duas rodadas no banco. Mas quando entra as vezes dá até sorte. Entra no time daquele que joga bem e tem paciência com quem gosta de artilheirinho. Esse geralmente toca muito mais a bola, dá chance para o pereba, tem pena dele, não xinga. Mas também não perde a bola nunca, sempre abre muito o placar antes de tocar a bola, é autossuficiente, não precisa de assistência, faz gol olímpico, de bicicleta, cabeça, peixinho. Nasceu para jogar bola. Quem gosta de artilheirinho de fato não nasceu para jogar bola, nasceu para jogar artilheirinho.
E contar essa história.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Imagina na... Ops!

E amanhã a expressão "imagina na Copa" vai perder o sentido. Quem diria, hein? O tempo passou e o tal 12 de junho de um 2014 que parecia bem longe já está aí. No Oriente ele já é uma realidade, mas como o Mundial é aqui na nossa casa, ainda faltam umas horinhas de sono para que a data chegue de fato. O apego com o "imagina na Copa" era tanto que o bordão parecia imortal. E agora? Alguma expressão vai substituir o "imagina na Copa"? Os cariocas até podem lançar um "imagina nas Olimpíadas", que teria uma sobrevida de dois anos, mas não sei, não... Acho que não pega. Enfim... Façam suas apostas, sejam criativos... Porque a Copa até chegou, mas o brasileiro ainda precisa de uma expressão que misture tão bem a indignação, o assombro, a descrença e o deboche. De tanto imaginar como ia ser na Copa, ela chegou e parece que pouca coisa mudou. A um dia do início do grande evento, constataram que só metade das obras de mobilidade previstas lá no início ficaram prontas. Hoje, um taxista do Rio foi pego cobrando R$187 para levar um passageiro da rodoviária até Copacabana. Deus proteja os turistas! Aliás, o todo-poderoso já está agindo direitinho, porque não deixou nada de ruim acontecer com um gringo que simplesmente saiu do Galeão e foi andando com mala e tudo pela Linha Vermelha. Coitado, ele deve ter vindo de um país civilizado em que existe estação de metrô no aeroporto e é seguro sair andando por vias expressas... É a nossa Copa, e bizarrices como essa não vão faltar. Não quero questionar os gastos, o roubo, os caixas-dois, as atitudes tirânicas da Fifa... Eu, como mera cidadã, tô é achando esse negócio de Copa em casa o maior barato. Veja só. Teve brasileiro que nasceu, cresceu, se reproduziu, morreu e não teve chance de ver uma festa tão grande como essa no próprio país. Nós realmente estamos vendo a história acontecer por um ângulo privilegiado. Moro no Rio. Minha cidade está lotada, com gente saindo pelo ladrão, mas o clima, para mim, está uma delícia. O trânsito está mais caótico do que nunca, mas pelo menos agora eu posso prestar atenção em gestos de pessoas fascinadas com a Cidade Maravilhosa. Numa rápida ida à padaria eu dei cara com grupinhos de chilenos, italianos e colombianos. Até me contagiei com o olhar de encanto dos turistas para uma pracinha bem sem graça aqui perto de casa. Hoje, voltando do trabalho, eu notei que o Largo do Machado estava tão cheio que parecia Natal. Mas é Copa... E eu ainda não me acostumei a ser a anfitriã. Espero não pagar tantos micos como o meu país, mas acho que vai ser inevitável. Ah, o importante é ser bem brasileira e ganhar na simpatia. Agora não adianta mais imaginar...
Boa Copa para todos nós!  

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Nova York e eu

É incrível como a vida às vezes se resolve. Já há um tempo que estava querendo viajar sozinho e quando me dei conta já estava feito. Uma vaquinha aqui outra ali e as passagens já estavam compradas: Nova York. Minha primeira viagem sem amigos, sem família, sem ninguém. No final das contas acabei me encontrando por lá. A verdade é que em Nova York tudo se encontra. E 'tudo' é muito mais do que eu imaginava.
Peguei o avião e aquele frio na barriga. Acho que a ficha caiu. De repente, um avião. E eu sentado esperando decolar. Até ontem era uma conversa, um livro de viagem aberto, um roteiro pela metade. Putz, eu não fiz roteiro. Putz, vai ser incrível!
A aterrissagem, a mala de mão no bagageiro, meu fone enrolou, o passaporte não está no meu bolso. Saí do avião com pressa e uma fila enorme na imigração. 7 da manhã. A moça extremamente simpática perguntou se era minha primeira vez no país, eu disse que sim. Enjoy! Lá fora a manhã estava cinza, acho que é porque era uma segunda-feira. No caminho, saindo do aeroporto em New Jersey, um pedacinho do que parecia um amontoado de prédios enormes ao longe. E acho que aquele é o Empire States. Começa a tocar Frank Sinatra na minha cabeça.
Um vento frio me dava boas vindas na calçada da Central Park West, e eu sem estudar o metrô caminhava por ali até dar em não sei onde - essa foi sempre minha melhor rota. Na rua taxis, schoolbus, ciclistas, carrinhos de sorvete, motoristas possivelmente reparando meu sorriso deslumbrado. Alguém deu play em algum filme e eu entrei por acaso.
Foram 14 dias nesse ritmo. A sorte é que Nova York é uma cidade incansável, mesmo para pés chatos como o meu. Deu para entender o porque de tanto. Cabe de tudo, tem de tudo, fala-se de tudo, vê-se de tudo. O pedestre é um mero agente, a experiência é só sua. Você e a cidade. Os parques, os museus, as ruas, os prédios com escadas de incêndio do lado de fora, os arranha-céus, o detalhe, o exagero. Para todos os gostos. Acredito que cada um visita uma Nova York diferente, mesmo quando já não é a primeira vez lá.
No metrô o encontro de todos os tipos, a personificação da cidade. Não só as diferenças de estilo, ou de cultura mas provavelmente cabeças extremamente opostas que circulam por Nova York a todo instante. Pessoas que nunca imaginariam se encontrar ali, algumas delas se entreolhando nesse microuniverso, outras desinteressadas em olhar quem sentou do seu lado sacando seus tablets e laptops ali mesmo. Um espaço-tempo improvável que eu participei e tornei mais improvável ainda quando fiquei amigo de uma senhora de Oklahoma que estava perdida como eu. Nos ajudamos e provavelmente nunca mais vamos nos ver na vida.
Fora os outros encontros, de quem me mostrou e me ajudou a conhecer melhor a cidade. Os cinco dias com minha prima Natasha, dos quais conhecemos a parte turística em tempo recorde, andamos pela Brooklyn Bridge, conhecemos o Harlem, a Columbia University, ficamos perplexos com a claridade paralisante da Times Square à noite e com a simpatia dos atendentes de toda e qualquer loja que entramos. Também com o Tom, meu amigo residente e já praticamente americanizado, me guiando no MoMa, me mostrando as lojas nerds, a feira da Union Square, fazendo um tour no Brooklyn e batendo o melhor dos papos no Williamsburgh Park. A Mafê também, que chegou um dia antes de mim mas chegou pra ficar - sorte a dela. Comemos o melhor hamburguer do mundo no Spotted Pig, fomos para a noite mais divertida no Fat Cat - um bar incrível com jazz ao vivo, ping-pong e outros jogos - o passeio no Bryant Park, o jantar no Chelsea Market e as voltinhas por aí nas conversas mais deliciosas sobre o que era aquilo tudo ao nosso redor.
Nova York me abraçou exatamente como me diziam. Voltei mais ainda com a impressão de que as coisas não devem terminar em si, no sentido de que tudo deve se encontrar para acontecer. E Nova York é incrivelmente onde as coisas se encontram e acontecem. Pelo menos grande parte delas.
Volto logo. Foi incrível.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

De mão cheia

Sei que o outro dono deste blog não gosta muito que eu escreva dois textos seguidos - ele tem dificuldade de admitir, mas é cheio das manias -, mas hoje é por uma boa causa. Quatro de abril é o aniversário do Cena Seguinte! Cinco anos!! Uma mão cheinha! Em se tratando de internet, mundo vasto mundo onde o sucesso de hoje sequer será lembrado amanhã, é coisa para caramba. Morro de orgulho de ter um blog. Ou melhor, um site! É, desde o ano passado isso aqui é Cenaseguinte.com.br. E a gente espera que o que começou de brincadeira, meio sem motivo, vire coisa séria. Pelo menos até onde esses dois desmiolados conseguem ser sérios.
No aniversário de dois anos do blog, o João postou um texto cujo título é "Faça um blog". Três anos depois, eu reitero. Faça mesmo um blog! Se você acompanha os nossos textos já sabe que nós dois adoramos uma nostalgiazinha, um caso pinçado lá do fundo da memória, um quê de brechó... Então imagina como é gostoso se perder - e se reencontrar - pela linha do tempo do Cena Seguinte. Em cinco anos, amadurecemos, ganhamos diploma, começamos a trabalhar, conquistamos muitas coisas legais, perdemos outras tantas, conhecemos culturas totalmente diferentes da nossa, experimentamos diversas sensações, rimos, choramos - mesmo, João? - nos apaixonamos e desapaixonamos por algumas pessoas, pagamos micos, sofremos, cantamos, atuamos, brincamos, vivemos. E tá tudo aqui no blog. Num rápido passeio pelos nossos textos você se depara com uma homenagem a um cachorro recém-falecido, entende como é subir num palco para receber um prêmio, lê críticas de shows, saca como é ter um dos nomes mais comuns do país e faz viagens grátis ao passado e ao futuro. Gosto de me imaginar velhinha, empunhando o meu tablet (?) e relembrando momentos gostosos da vida pelos textos desse blog. Escrever é a forma que eu e João encontramos de entrar para a história. A nossa história. Obrigada, Cena Seguinte! Não te largo nunca mais! 

segunda-feira, 17 de março de 2014

A pergunta que interessa

Rio de Janeiro, alguma tarde de verão, 38 graus.

Entro na farmácia crente de que, quando passar pela porta, vou receber a brisa geladinha do aparelho de ar condicionado que costuma ter em lojas grandes. Se costuma, não é regra. Cruzo o limite entre a rua e o estabelecimento comercial e sinto um bafo quente no rosto. Uma gotinha de suor até escorre pelas minhas costas, numa cena bem menos sexy que a de um antigo comercial de cerveja. O calor é tanto que mal consigo lembrar porque estou ali. Largo o celular na bolsa e quase corro pelas gôndolas. Tenho que ficar o menor tempo possível dentro daquela filial do inferno. O esforço não adianta muito, já que a fila para pagar está gigante. Várias cadeiras e computadores vazios. Só dois caixas funcionam, um preferencial e outro para pessoas, digamos, "normais". Engraçado é que no caixa preferencial, passando as compras, está um rapaz que parece bem "normal". Ele claramente não tem mais de 60 anos, aparentemente não tem deficiência física, nem segura uma criança nos braços. Ah, olhei para a barriga e percebi que ele não está grávido. A moça que logo atrás dele espera ser chamada no caixa preferencial tem um bebê no colo. Sem jeito, ela tenta equilibrar a cesta de compras e o neném, além de tentar abaná-lo. O cara não termina nunca de passar as compras dele. Nisso, a minha vez no caixa "normal" chega. Eu, morta de calor, mas morrendo de pena da moça com o bebê, digo: "Pode passar aqui nesse, moça". A funcionária da farmácia me repreende: "Não, senhora. Esse caixa não aceita ninguém da fila preferencial". Eu reajo, sem entender nada: "Como assim? É claro que aceita! Qual é a diferença?". Ela: "Não posso, é norma da gerência". Eu, chocada: "Mas ela está com uma criança no colo! Qual é o sentido da fila preferencial?". Ouço um burburinho atrás de mim. Era o pessoal da minha fila reclamando que eu estava armando barraco e demorando ainda mais o processo. A menina do caixa, impassível, me mandar um olhar de xeque-mate: "É crédito ou débito, senhora?". Eu nem raciocino direito. Passo as compras, pago sei lá se no débito ou no crédito e vazo o mais rápido possível daquele lugar. Quase na saída, vejo que a moça com o bebê no colo começava a ser atendida no caixa preferencial. Coitada, pensei. E coitada também da atendente da farmácia, que cumpre ordens e trabalha numa loja sem janelas e com ar condicionado desligado em pleno verão. No fim das contas, só uma pergunta
interessa: "É crédito ou débito?"

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Avô

Meu avô era mais uma dessas figuras míticas da minha família que eu não tive o prazer de conhecer. Dizem que ele era incrível, e eu acho que a falta torna mesmo as coisas ainda mais incríveis. Ele morreu no mesmo ano em que eu nasci, 4 meses antes. E ainda que seja complexa essa relação pós-mortem, penso muito nele, uma figura absolutamente impávida, batucando com os dedos entre as canaletas da mão, de camisa social um pouco aberta e sentado no sofá. Magro, tossindo forte às vezes, prestes a dar uma opinião. E dizem: a opinião mais sensata do mundo.
Sidney Álvaro Miller, aeroviário, nascido em Campinas, trabalhava na VASP no momento mais crítico da aviação brasileira. Imagina quanta história. No quarto dele e da minha avó ainda existe um móvel praticamente dedicado a uma quantidade enorme de medalhas e brasões de honra. No seu armário dezenas de ternos e gravatas, tudo arrumado. Impecável. Era como se precisasse usá-los amanhã para trabalhar. Eu sempre tive o hábito de vasculhar tudo na casa da minha avó, mas sabia que o armário do meu avô era outra história. Uma das primeiras e únicas broncas que a minha avó me deu na vida foi uma vez que eu abri e comecei a vasculhar tudo. Era mesmo como se amanhã ele fosse trabalhar e vestir qualquer uma das roupas distintas daquele armário.
Diversas vezes atendi o telefone da casa da minha avó, e era gente a procura dele. "Posso falar com o Seu Sidney?" Eu, num súbito desespero, sempre ia correndo perguntar o que falar ou fazer. E minha avó respondia. "Ah, com certeza é das páginas amarelas. Vou lá atender." E dizia que era engano ou qualquer outra coisa para encerrar logo a ligação. Queria poder gritar "Vô, telefone!" e ele aparecer do meu lado sem que eu percebesse sua chegada, como diziam que ele tinha o dom de fazer. Ou queria poder falar que meu avô estava muito ocupado contando histórias para mim, ou escrevendo comigo, ou me ensinando a ouvir boa música. Uma vez achei uns poemas bem no fundo de uma gaveta. Não sabia nem que meu avô era desses de escrever. E eram coisas deliciosas de se ler. Em forma de guardanapo ele finalmente me contou algumas histórias.
Ele morreu em Petrópolis, no antigo apartamento de férias que já foi da nossa família. Existem teorias de que ele está lá até hoje, tratando de manter todas as memórias bem amarradas nos tacos, entre as paredes, invadindo os sonhos de quem dorme lá e nem sequer o conheceu ou soube que ele existiu. É certo de que ele, pelo menos, frequenta aquele lugar. Uma vez, bem antes de vendermos o apartamento, estávamos indo embora, e deixando o prédio de carro notamos que um quarto tinha ficado aceso. Para retornar ao Rio, dávamos a volta numa rua em frente e novamente víamos o prédio de longe. E nessa segunda olhadela para o apartamento, a luz já estava apagada. Pensamos que foi o vovô que apagou porque já pensava em se deitar.
Tenho um avô que é assim. Um punhado de causos, objetos, histórias, semelhanças de parentes e imaginação. Principalmente imaginação. Tenho um avô inventado, ao estilo "Free as a Bird", que o John Lennon compôs e o Paul continou. Às vezes paro para pensar como seria se eu tivesse o conhecido, invento algumas histórias na minha cabeça. Consinto quieto à maneira que o rumo das coisas achou melhor traçar. Mas penso que o nosso último contato teve toda essa barreira maternal na frente. Barriga, pele, bolsa d'água. Uma vez acariciando a barriga de minha mãe é quase certo que ele cochicou: "Um dia nos veremos, não sei se nessa ou noutra vida. Mas nos veremos e eu serei seu avô e você meu neto outra vez." E eu sorri relaxado.

Vô, esta mensagem está com algumas semanas de atraso. Mas onde quer que você esteja, - provavelmente ainda batucando as canaletas da mão - feliz 100 anos.

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