E então eu acordo às 6h10 de um dia
qualquer do ano de 2042 e, ainda com os olhos fechados, sento na cama e
piso no rabo do gato geneticamente modificado para não soltar pelos e
causar alergia às crianças. Forçando as pálpebras, amaldiçoo o bichano e
me pergunto quando foi que permiti que um animal deste tipo fosse viver
sob o mesmo teto que eu. Tomo um banho de três minutos contados - a
água é escassa - e o sabonete, quase um esterilizador, faz o seu
trabalho. Abro o armário, visto a primeira roupa que encontro - as peças
são quase iguais, sóbrias, tentam esconder a barriga e a flacidez de
uma mulher que bebeu muito chopp e ingeriu gordura trans à vontade na
juventude. Saio de casa não sem antes dar um beijo no filho que engole
uma pílula que corresponde ao antigo café da manhã sem desgrudar os
olhos do seu celular, computador, videogame, som... O que é aquilo, meu
Deus? Na minha época os aparelhos eletrônicos eram mais bem definidos.
No trabalho, sento na cadeira e só me desgrudo dela para eventuais idas
ao banheiro, já que o almoço é ingerido ali mesmo, na baia, para que o
tempo não seja desperdiçado. Burocracia, aliada a burrocracia e, é
claro, umas escapadelas para fuçar a rede social da moda na Internet.
Tenho dificuldades para mexer no site, é muita coisa ao mesmo tempo, mas
consigo aceitar um convite de uma reunião da turma que se formou na PUC
há 30 anos. Trinta anos, o tempo voou, e eu não reconheço mais ninguém.
Pera aí, essa baranga da foto era a gostosona de 2008.1? E eu ainda
penso que estou mal, cruzes! Com o sol já escondido, é hora de voltar
para casa para mais uma noite como todas as outras. O filho parece
estudar orações subordinadas - ainda aprendem isso? - e ignora a ajuda
que ofereço, mesmo não me lembrando bem da matéria. O marido, mal
notando minha presença, acaricia o gato hipoalergênico enquanto assiste a
um jogo, que lembra o futebol que costumavam jogar quando eu era
garota, na televisão. Aproveito para trocar os esmaltes das unhas - uma
maquininha executa o trabalho em quatro minutos - e me recordo do tempo
em que ia a salões de beleza e gastava meia hora batendo papo furado com
a manicure até escolher a cor que estaria nas minhas mãos durante uma
semana. Quem hoje gastaria meia hora com algo quase inútil? E que fim
levaram as manicures em pleno 2042? O jantar sem gosto é preparado em
dois minutos e cada membro da família come em um cômodo do apertado
apartamento. Resolvo voltar ao velhos tempos e ler um livro de verdade.
Daqueles com capa, orelha, páginas e até, quem sabe, ilustrações.
Procuro em uma cômoda velha um dos meus títulos favoritos, mofado,
claro. Com a lembrança do passado nas mãos, pego no sono para acordar em
mais um dia qualquer, com tudo igual e indiferente à minha figura.
De
volta ao presente, 2012, solto até um suspiro de alívio por ainda estar
aqui, mas sinto um arrepio de medo ao pensar que o futuro pode ser
assim - ou ainda pior. Passar pelo mundo sem deixar nenhuma marquinha?
Ou sem ter perturbado algumas mentes? Não, não quero. Mas, no implacável
cotidiano, a impressão que dá é que os dias vão passando cada vez mais
rápido, as folhinhas vão se desprendendo do calendário e, quando paro,
percebo que ainda não fiz nada de útil. Uns dizem que a juventude é
fugaz, que tenho que sugá-la ao máximo, sem pensar nas consequências. Já
outros aconselham a ser prudente, para não me arrepender e pagar
depois. No meio de tudo, me sinto numa inércia involuntária, sentindo
tudo que é bom escorrer pelas mãos. Faço parte da juventude pós-moderna
que não crê em nada, mas busca uma coisa que nem sabe o que é. Sou fruto
das gerações que lutaram bastante por objetivos claros e tiveram êxito.
Agora, que tudo está a um clique de distância, tenho, ao mesmo tempo,
vontade e preguiça de responder a todas as dúvidas que surgem sobre o
meu futuro. Mas sei que é agora que devo me mexer para que o que me
espera daqui a 30 anos não seja sufocante como uma vida apagada e
automática.
Um comentário:
eu posso estar ferrado na vida aos 52, mas nunca terei um gato, hipoalergênico.
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