domingo, 16 de setembro de 2012

Para Milton e seu boné

Teve uma época da minha infância em que eu esperava chegar sábado, quando logo nos primeiros momentos da manhã - que hoje em dia não sei mais como são - eu acordava animado e colocava o disco do Milton Nascimento. Tinha que ser só no sábado e ponto final - eu tinha dessas coisas. Era bom porque começava logo com "Anima" que nos obrigava a ter um sábado feliz de verdade, aquela coisa meio céu azul de cidadezinha pequena. Para não parecer parcial, revezava com os CDs do MPB4 e do Caetano, querendo trazer também "Passaredo" e "Podres Poderes" para o meu fim de semana. O negócio é que com Milton era outra coisa. Na minha cabeça, vendo a capa de "Canção da América", aquela figura meio divina, meio santificada que eu nunca tinha visto antes senão naquela mesma imagem, me induzia a algo transcendental. E é muito engraçado isso de gostar de artista que não é da sua geração. É sempre um dia que seu pai botou pra escutar sem pretensão e que te marcou para o resto da vida. Lembro de decorar "Paisagem na Janela" porque me transportava para esses momentos inesquecíveis.
Acontece que esses dias resgatei esse Milton que eu só conhecia bem pelo álbum "Canção da América", que nem era um disco só, era uma compilação de sucessos dele. Esse retorno se deu recentemente e com tanta intensidade que eu não consigo escutar o que não seja Milton Nascimento há mais de duas semanas. E a culpa disso tem nome e está em cartaz. É o musical "Nada Será Como Antes", feito só com interpretações de suas músicas, aquela ideia que você pensa que já deviam ter tido há muito tempo. E para quem não é dos mais chegados a teatro musical como eu, desses meio metidos a Broadway, tem um valor e um requinte que só se compara a "Beatles Num Céu de Diamantes", que por sinal é dos mesmos Charles Möeller e Claudio Botelho. O baque é tanto que eu tive que ir duas vezes para entender.
Tava tudo lá. Minas, o clube, a esquina, o trem, o menino e o moleque. A primeira vez me fez ter a certeza de que eu conhecia menos do que imaginava, e que o que se dá pra fazer de imagem com as canções do Milton é algo sem tamanho nesse mundo. O cenário é somente um, uma casa ao estilo antigo, cheia de gente com vestes casuais, às vezes fantasias improvisadas das próprias roupas ou do que se tem de coisa dentro de casa. Algo como uma tarde inteira para se trocar histórias com a família e com os amigos mais chegados. Essa atmosfera que permeia o lúdico e o denso, daquelas histórias tristes e alegres que a gente tem pra contar, com poucos elementos cênicos. E dentro delas um universo real à parte. A menina que virou mulher, o homem que ainda é menino, o amigo que foi embora, o choro desesperado, o grito revoltado, a prece descrente, tudo. Nesse embalo, a qualidade sonora é de dar inveja, tanto dos instrumentistas quanto das vozes que Deus dá a poucos. Cheguei em casa com "Canção Amiga" na cabeça, que eu nem conhecia, cantarolando baixinho. Depois vieram flashes de "Amor de Índio", que foi impecável. Na hora de dormir, trechos de "Paula e Bebeto", "Para Lennon e McCartney" e começou o mergulho no mar em que eu me encontro hoje.
Na segunda vez, foi ainda mais impressionante. Ainda que o elenco não estivesse com a mesma energia que a primeira, o estouro e o nó na garganta foram ainda mais marcantes. Eu já estava aquecido com uma série de dias seguidos dissecando o disco "Clube da Esquina", exortado pelas músicas que passaram batidas esse tempo todo. Tudo pra mim foi uma extraordinária propaganda espontânea e um endosso de que Milton Nascimento é uma das maiores preciosidades da música. É um caso que não se entende facilmente. "Nada Será Como Antes" leva as canções de Milton para onde elas realmente devem estar, nos lugares fantásticos da nossa lembrança. É aquela música que você quer pegar com a mão, de tanto que materializa o que se chora por dentro de saudade, de alegria ou de tristeza. É tudo o que eu quis dizer nos sábados pela manhã e não conseguia. Milton Nascimento não é desse mundo.

Não perca!: 'Milton Nascimento - Nada Será Como Antes' no Theatro Rio NET, quinta à sábado às 21h e domingo às 20h.

Um comentário:

Marcela Capobianco disse...

Adorei! É igualzinho ao que estou vivendo. Quem sabe na terceira vez o Milton dá o ar da graça na plateia...

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails