quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Relouín

Para que o tamanho das mãos não entregasse era preciso que o disfarce fosse convincente. E se a vítima fosse condescendente, mesmo sabendo do que se tratava, já era o bastante para ganhar a noite. Mais uma vez uma história de pátio, daquelas que reunia dezenas de crianças na noite de 31 de outubro para começar a já famosa corrida atrás de doces. Tinha época em que o grupo de vampiros, lobisomens e por ventura zumbis com carinha de anjo determinava o que seria de bom grado para a noite de Halloween. O importante era que sempre, voltados da escola, a busca de doces ocorresse. E com a intenção primária de bater o recorde do ano anterior.
O prédio contava com dois blocos de 72 apartamentos cada, talvez a melhor das desculpas para pelo menos uma vez por ano pedir doces ou travessuras de porta em porta. Travessuras mais para completar a frase fofa. O sangue nos olhos era muito mais pelo doce que os vizinhos podiam nos dar. E alguns anos de experiência, ou pelo menos os mais experientes, já ensinavam que a busca tinha que ser um negócio quase profissional. Primeiro ia-se até o último andar de onde tudo começava a ser organizado. Sem brincadeira, era um grupo de quase 15, cientes de que, mesmo fazendo barulhos de fantasma, precisavam entender que alguns eram mais bem humorados do que outros. Sabido isto necessariamente pulávamos os inconvenientes, por vezes arriscando se desse para ouvir as vozes vindas do apartamento. E claro, se ela fosse convidativa. Tinha andar com histórico ruim, que mesmo com a luz da cozinha acesa sempre silenciava a casa inteira para não ter que abrir a porta para crianças. Por outro lado tinha quem já esperasse por nos receber, fazia cena, contava história de terror. Fora que geralmente o prêmio era sempre farto e dava para dividir entre todos. Quando o vizinho tinha cara de bem sucedido, tinha sempre uma voz mais ousada que insistia "Ah, pode ser até biscoito de maizena".
Era claro que nas portas de suas próprias famílias era obrigatório contribuir com o melhor que tivesse. E os mais fracos acabavam sempre ficando para ver a novela. O legal de continuar até o final era por conhecer a casa de cada um, mesmo que só a sala ou a cozinha. Por detrás das máscaras de visão apertada dava para ver que cada porta tinha um mistério, e o nervoso de não saber o que estava por vir era sempre a melhor parte. Uma vez, nunca me esqueço, um senhor abriu a porta triste e conversando derramou algumas lágrimas por dizer que não tinha doce e que sua mulher estava na UTI. Mesmo assim deu uma singela barra de alfarroba de banana. O que me lembro é que a reação do grupo de crianças foi subitamente compartilhar os doces, oferecendo um Trakinas ou uma barra de chocolate que fosse, para que sentisse melhor. Só essa lembrança já enobrece aqueles pares de bruxos e monstrengos ávidos por açúcar.
No mais, tendo terminado o percurso inteiro, a divisão parecia ser a hora mais esperada. Se fosse somar, cada um levava para casa uma variedade de doces para mais de um mês. Acabava que sempre caíam no esquecimento - uma vez eu achei um saco cheio de formigas atrás de um armário aqui de casa - e a graça maior era o momento, se fantasiar, encontrar todos os amigos do prédio, falar besteira, fazer zona...
Ainda moro no mesmo prédio, e mesmo que a maioria dos meus amigos ainda morasse, não teria mais cabimento. Hoje pensei até em comprar um doce rebuscado para dar se algum grupo de crianças resolvesse tocar aqui em casa. Acabei não comprando. O pior é que já deu meia noite e não veio ninguém. E isso não tem cara daquele papo de geração mais ligada na cultura nacional, de que Halloween é americanismo. Ah, dia das bruxas é uma festa como qualquer outra. E mesmo que descrente das crianças que já devem estar enfiadas em suas camas, ainda tenho um pacote de biscoito maizena inteirinho para quem vier. É, é só o que tenho.

Para os amigos de sempre do Missões. Me deu uma saudade agora...

2 comentários:

Marcela Capobianco disse...

Que fofo! Adorei... e adorei a foto

Fábio Calderon disse...

Emocionante! Não existe outra palavra para definir essa memória que, junto com suas palavras, se formou nitidamente em minha mente! Tenho um orgulho tremendo de ter passado por essa e outras milhões de histórias maravilhosas nesse lugar mágico e sinto muita pena de saber que outras crianças não estão passando por tudo que passamos. Hoje, sei que muito de mim devo a esse grande teatro chamado Missões, no qual nos transformávamos em vampiros, zumbis, monstros, mas também em heróis, personagens de desenhos animados e, até mesmo, aventureiros. Obrigado pela lembrança maravilhosa João! Feliz dia das bruxas para nós que um dia já fizemos esse lugar ser tão colorido, especial e cujo as lembranças estão guardadas com tanto carinho!!!

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