sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Avô

Meu avô era mais uma dessas figuras míticas da minha família que eu não tive o prazer de conhecer. Dizem que ele era incrível, e eu acho que a falta torna mesmo as coisas ainda mais incríveis. Ele morreu no mesmo ano em que eu nasci, 4 meses antes. E ainda que seja complexa essa relação pós-mortem, penso muito nele, uma figura absolutamente impávida, batucando com os dedos entre as canaletas da mão, de camisa social um pouco aberta e sentado no sofá. Magro, tossindo forte às vezes, prestes a dar uma opinião. E dizem: a opinião mais sensata do mundo.
Sidney Álvaro Miller, aeroviário, nascido em Campinas, trabalhava na VASP no momento mais crítico da aviação brasileira. Imagina quanta história. No quarto dele e da minha avó ainda existe um móvel praticamente dedicado a uma quantidade enorme de medalhas e brasões de honra. No seu armário dezenas de ternos e gravatas, tudo arrumado. Impecável. Era como se precisasse usá-los amanhã para trabalhar. Eu sempre tive o hábito de vasculhar tudo na casa da minha avó, mas sabia que o armário do meu avô era outra história. Uma das primeiras e únicas broncas que a minha avó me deu na vida foi uma vez que eu abri e comecei a vasculhar tudo. Era mesmo como se amanhã ele fosse trabalhar e vestir qualquer uma das roupas distintas daquele armário.
Diversas vezes atendi o telefone da casa da minha avó, e era gente a procura dele. "Posso falar com o Seu Sidney?" Eu, num súbito desespero, sempre ia correndo perguntar o que falar ou fazer. E minha avó respondia. "Ah, com certeza é das páginas amarelas. Vou lá atender." E dizia que era engano ou qualquer outra coisa para encerrar logo a ligação. Queria poder gritar "Vô, telefone!" e ele aparecer do meu lado sem que eu percebesse sua chegada, como diziam que ele tinha o dom de fazer. Ou queria poder falar que meu avô estava muito ocupado contando histórias para mim, ou escrevendo comigo, ou me ensinando a ouvir boa música. Uma vez achei uns poemas bem no fundo de uma gaveta. Não sabia nem que meu avô era desses de escrever. E eram coisas deliciosas de se ler. Em forma de guardanapo ele finalmente me contou algumas histórias.
Ele morreu em Petrópolis, no antigo apartamento de férias que já foi da nossa família. Existem teorias de que ele está lá até hoje, tratando de manter todas as memórias bem amarradas nos tacos, entre as paredes, invadindo os sonhos de quem dorme lá e nem sequer o conheceu ou soube que ele existiu. É certo de que ele, pelo menos, frequenta aquele lugar. Uma vez, bem antes de vendermos o apartamento, estávamos indo embora, e deixando o prédio de carro notamos que um quarto tinha ficado aceso. Para retornar ao Rio, dávamos a volta numa rua em frente e novamente víamos o prédio de longe. E nessa segunda olhadela para o apartamento, a luz já estava apagada. Pensamos que foi o vovô que apagou porque já pensava em se deitar.
Tenho um avô que é assim. Um punhado de causos, objetos, histórias, semelhanças de parentes e imaginação. Principalmente imaginação. Tenho um avô inventado, ao estilo "Free as a Bird", que o John Lennon compôs e o Paul continou. Às vezes paro para pensar como seria se eu tivesse o conhecido, invento algumas histórias na minha cabeça. Consinto quieto à maneira que o rumo das coisas achou melhor traçar. Mas penso que o nosso último contato teve toda essa barreira maternal na frente. Barriga, pele, bolsa d'água. Uma vez acariciando a barriga de minha mãe é quase certo que ele cochicou: "Um dia nos veremos, não sei se nessa ou noutra vida. Mas nos veremos e eu serei seu avô e você meu neto outra vez." E eu sorri relaxado.

Vô, esta mensagem está com algumas semanas de atraso. Mas onde quer que você esteja, - provavelmente ainda batucando as canaletas da mão - feliz 100 anos.

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