Eu moro no mesmo prédio há vinte e dois anos. Em pouco mais de duas décadas, já vi muita coisa acontecer nesses oito andares do comecinho da General Glicério. Mudanças, nascimentos, casamentos, mortes... Já vi até um gato despencar do sétimo andar e continuar vivo, mesmo que por alguns minutos. É, ele já tinha gasto as outras seis vidas dele. Quando vim morar aqui, era um pingo de gente aprendendo a falar. Fui crescendo - para cima e para os lados - e vira e mexe um vizinho mais antigo me pergunta, no elevador, se eu não vou parar de crescer. A resposta depende do meu humor. Em dias de TPM braba já devo ter respondido que parei de crescer para cima há muito tempo, mas que não consigo parar de crescer para os lados. É a deixa para que o resto da viagem seja quieta até o quinto andar. Dia desses eu estava pensando comigo mesma se consigo saber quem são os moradores dos outros trinta e três apartamentos do meu prédio. Cansei da lista quando ela não tinha chegado nem a dez. Acho que é porque ando passando os segundos intermináveis do elevador olhando fixamente para a tela do celular. Houve um tempo em que não era assim. Eu ficava para cima e para baixo com a Ragenda, minha secretária do lar - que, aliás, merece um texto só para ela aqui no blog - subindo e descendo as escadas do prédio. A Ragi nunca foi muito fã de elevador, e diz que é bom subir escada para fazer exercício. Falante, ela chegava a passar horas equilibrando os pezinhos nos degraus batendo papo furado com um porteiro ou um vizinho. E eu lá, do lado dela, esperando a conversa acabar. Nessas idas e vindas na escada, várias vezes topávamos com a dona Geni, uma velhinha daquelas bem típicas, que morava no segundo ou terceiro andar. Eu, que sempre fui um pouco carente do modelo dona Benta de avó, nutria uma simpatia espontânea pela dona Geni. Ela era uma graça. Eu só não conseguia entender porque a Ragenda, toda vez que topava com a pobre velhinha, começava a cantar "joga pedra na Geni, joga bosta na Geni... Ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir... Ela dá para qualquer um... Maldita Geni!". E toda vez eu entrava numa paranoia braba tentando imaginar porque aquela senhorinha fofa era tão terrível a ponto de ser boa para apanhar!! Alguém já tinha jogado bosta na Geni? Coitada! Quanto tempo ela ficou fedendo? E ela dá o que para qualquer um? Eu tinha uns seis, sete anos, não conseguia encontrar as respostas para as minha dúvidas e não tinha nem coragem de perguntar para a Ragenda o porquê daquilo tudo. O engraçado é que a dona Geni não ficava chateada com a música. Pelo contrário, ela até ria. Vai ver era malvada mesmo... O tempo passou, eu comecei a andar de elevador por conta própria, os encontros com a dona Geni foram ficando escassos e ela já não mora aqui no prédio há muito tempo. Quando enfim descobri que "joga pedra na Geni" era um verso de uma música do Chico Buarque, tudo ficou claro. E eu fiquei chocada porque a Ragenda comparava a nossa fofa dona Geni com o travesti da "Ópera do malandro". Hoje, "Geni e o zepelim" é uma das minhas músicas preferidas. É forte, tensa, teatral... Mas, sempre que escuto, lembro da história aqui do prédio e rio sozinha. Algum zepelim gigante já deve ter se encarregado de levar a dona Geni para o céu... E algo me diz que ela também sorri a bordo do dirigível.