domingo, 16 de janeiro de 2011

A caixa e outras histórias


Outro dia desses, família refestelada no sofá da eterna casa do vô em Valença, um tio meu, que sempre tem um causo pra contar, começou:
- Tava andando na rua, aí um cara falou que me conhecia desde pequeno. Falei que não lembrava dele, não, mas ele insistiu, e disse que foi aqui em casa que ele viu televisão pela primeira vez na vida.
A mãe do tal cara estava doente e, sem dinheiro, recorreu à casa do doutor Lourenço (meu vô) para ser examinada e, quem sabe, medicada sem precisar ir para o hospital. Era o comecinho dos anos 60, e o doutor Lourenço fora o primeiro da rua Silva Jardim a ter televisão. E assim foi porque ganhou o aparelho de presente de um abastado da cidade. Imagina se o doutor, com milhões de problemas, centenas de pacientes e sete filhos pequenos ia dar ouvidos - e olhos - àquela nova invenção eletrodoméstica. O menino que acompanhava a mãe ficou chocado com o que via na frente dos seus olhos. Um moço, dentro de uma caixa, em preto e branco, falando com as pessoas do lado de fora, ali no sofá, coloridinhas que nem ele próprio. A mãe doente ficou igualmente estarrecida, embevecida diante daquilo que nem sabia explicar o que era. E o menino, que veio a se tornar o cara que esbarrou no meu tio uns cinquenta anos depois, ficou marcado para sempre.
Ao causo do meu tio seguiram-se outras reminiscências de família, como uma tia lembrando que os vizinhos se aglomeravam na sala lá da casa do vô para tentar ver um pouquinho que fosse daquela maravilha. E que meu avô proibia os filhos de assistir novela:
- Vocês já sabem, depois do Repórter Esso é direto para a cama! Não quero ninguém vendo essas bobajadas na televisão.
Mas mesmo assim as crianças esperavam o doutor deitar para, sorrateiramente, se juntarem às empregadas para poder ver breves ceninhas de "O direito de nascer". E de como era duro ter que subir no telhado para ajustar a imagem, mas isso só até alguém descobrir que colocar bombril na antena da tv já resolvia o problema. E a tarefa hercúlea que era conseguir uma linha para telefonar para o Rio de Janeiro:
- Alô, telefonista?! Aqui é do 99, queremos falar pro Rio.
- Sim, aguarda uma hora que eu vou tentar conseguir.
E lá ficava a vó sentada uma, duas horas ao lado do telefone para tentar conversar alguns minutinhos com a família na capital. Muitas vezes, a espera era em vão ou, quando finalmente conseguia a linha, do outro lado só se ouviam chiados.
Mas ter uma telefonista numa cidade pequena era uma mão na roda:
- Oi, telefonista! É aqui do 99, do doutor Lourenço liga, por favor, para a casa do doutor Cesar.
- Ih, minha filha, o doutor Cesar não tá em casa, não. Acabaram de ligar do hospital com uma emergência, ele foi correndo pra lá.
- Ah, então liga pro hospital!
A telefonista sabia de tudo e de todos - que tinham telefone - na cidade.

E assim se seguiu a tarde. Eu ali, babando, sentindo saudades de uma época que não vivi. Na mesma casa em que era tão difícil falar para outra cidade num aparelho enorme, grudado na parede, peguei meu aparelhinho menor que um palmo para falar com meu pai, que estava em outro estado. A ligação demorou para completar - uns cinco segundos - e eu, impaciente, já estava quase indo reclamar com a telefonista.

2 comentários:

Unknown disse...

Nossa, lendo esse texto lembrei muito das histórias que meu pai e seus primos e tios contam do interior.... só ouvindo de quem viveu pra sentir o tamanho do atraso..... é assustador em tão pouco tempo o nosso mundo ser tão diferente!

João Miller disse...

é bizarro mesmo. e eu confesso ter um prazer tão maior em ouvir essas histórias do que possivelmente contar para os meus netos histórias da internet no futuro. rejeição temporal.

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